O currículo escolar em tempos de pandemia do coronavírus - As escolas não podem ser vítimas de mais improvisações


Em recente consulta a seus sindicatos filiados, a CNTE constatou que a esmagadora maioria dos sistemas de ensino do país, através dos respectivos Conselhos de Educação, tem orientado a adoção da Educação a Distância (EaD) como forma de suprir parte do currículo das escolas durante seus fechamentos para evitar a proliferação do coronavírus.

Essa opção em utilizar a EaD, durante o confinamento dos estudantes e profissionais da educação, partiu do Conselho Nacional de Educação (CNE), que no último dia 18 de março publicou nota de esclarecimento com o seguinte teor parcial:   Item 5 – “no exercício de sua autonomia e responsabilidade na condução dos respectivos projetos pedagógicos e dos sistemas de ensino, compete às autoridades dos sistemas de ensino federal, estaduais, municipais e distrital, em conformidade com o Decreto nº 9.057, de 25 de maio de 2017, autorizar a realização de atividades a distância nos seguintes níveis e modalidades:  I - ensino fundamental, nos termos do § 4º do art. 32 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996;  II - ensino médio, nos termos do § 11 do art. 36 da Lei nº 9.394, de 1996;  III - educação profissional técnica de nível médio;  IV - educação de jovens e adultos; e  V - educação especial”.

Abaixo seguem as transcrições dos artigos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) mencionados nos incisos I e II do item 5, da mencionada nota do CNE: 

Art. 32, § 4º (LDB). O ensino fundamental será presencial, sendo o ensino a distância utilizado como complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais. (g.n) Art. 36, § 11 (LDB).  Para efeito de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância com notório reconhecimento, mediante as seguintes formas de comprovação:   (Incluído pela Lei nº 13.415, de 2017)   I - demonstração prática;   (Incluído pela Lei nº 13.415, de 2017) II - experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar;   (Incluído pela Lei nº 13.415, de 2017) III - atividades de educação técnica oferecidas em outras instituições de ensino credenciadas;   (Incluído pela Lei nº 13.415, de 2017)  IV - cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais; (Incluído pela Lei nº 13.415, de 2017)  V - estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras; (Incluído pela Lei nº 13.415, de 2017)  VI - cursos realizados por meio de educação a distância ou educação presencial mediada por tecnologias.  (Incluído pela Lei nº 13.415, de 2017) 

Embora a legislação e diversas normativas operacionais permitam a utilização de EaD na educação básica, o fato notório e indiscutível é que as escolas nunca se apropriaram dessa ferramenta de ensino que requer planejamento, acompanhamento e avaliação processual das atividades. E o mais importante: o poder público.

Em relação às suas escolas, precisa garantir o acesso de todos/as (estudantes e profissionais da educação) e em condições isonômicas, a fim de assegurar o padrão de qualidade universal da educação exigido pelo art. 206, VII da Constituição e art. 3º, IX da LDB. Algo que está intrinsecamente relacionado às campanhas governamentais e da sociedade comprometidas com o lema “Nenhuma Criança Fora da Escola”, válido para qualquer situação de oferta escolar (presencial ou remota).

Em relação à inclusão estudantil no processo de EaD, as redes de ensino precisariam assegurar equipamentos e interação virtual permanente dos profissionais com os estudantes, especialmente com aqueles de famílias cujo os pais, mães ou responsáveis apresentassem baixa escolaridade, dada a maior dificuldade dessas famílias em acompanhar o desenvolvimento escolar de seus filhos. Esse problema existe no regime presencial e será agravado em atividades de EaD.

Quanto aos profissionais, as atuais condições sanitárias que impedem reuniões para elaborar atividades pedagógicas, e a falta de acesso a equipamentos e programas (softwares) que exigem prévia formação, são obstáculos bastante comprometedores no sentido de garantir a formulação e a execução com qualidade dos conteúdos a serem ministrados.

Sobre esses dois pré-requisitos para a adoção da EaD, o Decreto 9.057, de 25 de maio de 2019, que regulamenta o art. 80 da LDB, acerca da “veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada”, diz o seguinte em seu art. 1º:

Art. 1º Para os fins deste Decreto, considera-se educação a distância a modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorra com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com pessoal qualificado, com políticas de acesso, com acompanhamento e avaliação compatíveis, entre outros, e desenvolva atividades educativas por estudantes e profissionais da educação que estejam em lugares e tempos diversos. (g.n)

Portanto, caso as condições acima não sejam asseguradas pelo poder público, o processo de EaD estará comprometido, sobretudo em relação aos conteúdos curriculares novos. Isso porque os profissionais e os estudantes não disporão de instrumentais compatíveis para garantir a aprendizagem. E a escola não é lugar de remendos ou improvisações. Ao menos não deveria ser! Quanto a essa preocupação, consultar os dados socioeducacionais das famílias e dos estudantes disponíveis no guia “Como educar crianças e adolescentes na pandemia do coronavírus”, elaborado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação1.

No tocante aos estudantes dos anos iniciais, em especial os da alfabetização, o caso é mais grave. A legislação é silente quanto a eles, mas a CNTE entende totalmente incompatível a adoção de EaD como método seguro e eficiente para o letramento.

Mesmo entendendo que a EaD, desde que devidamente instrumentalizada e com acesso e domínio universais pelos atores escolares, constitui ferramenta de auxílio ao processo de escolarização presencial, fato é que a realidade das escolas brasileiras e as condições de acesso a esse instrumento pedagógico impõem restrições que precisam ser consideradas pelos órgãos reguladores da educação básica nos estados, DF e municípios. De nada adianta autorizar algo que não poderá ser efetivamente praticado por todos/as! Igualmente, não se deve utilizar o momento de restrição escolar para fomentar a mercantilização desenfreada de plataformas de  EaD, através da iniciativa privada, ou mesmo para flexibilizar o currículo presencial, como tenta induzir a reforma do ensino médio (art. 36 da LDB).

É imprescindível, nesse momento difícil que o Brasil e o planeta atravessam, que os órgãos gestores da educação coloquem em prática os preceitos e princípios da gestão democrática (art. 206, VI da CF-1988 e art. 14 da LDB) para que, através do diálogo com os profissionais da educação e a comunidade escolar, ajustem soluções adequadas e realistas com vistas a amenizar os prejuízos impostos pela crise sanitária às escolas.

Para além das considerações sobre a utilização da EaD, também caberá aos sistemas de ensino, em conjunto com as escolas (profissionais e comunidade), definirem as formas de reposição dos dias e horas definidos pela legislação, considerando as possíveis novas regulamentações que poderão acontecer em razão da pandemia e os direitos indisponíveis de estudantes e trabalhadores escolares. 

 O direito à educação requer o compromisso do Estado e das Famílias (art. 205, CF-1988) para que seja concretizado, e esperamos que essas duas importantes instituições de nossa sociedade, em parceria com os profissionais da educação, coordenem os melhores esforços para atender as inúmeras contingências decorrentes do fechamento forçoso de nossas escolas por tempo ainda não estimado seguramente.

Por fim, reforçamos a necessidade de as escolas se manterem fechadas nesse grave momento de crise sanitária, pois o isolamento social tem se mostrado o método mais eficaz em todo o mundo para evitar a contaminação pelo coronavírus. E para que essa medida seja plenamente implantada, sem maiores sacrifícios para a grande parcela de nossa população que é de baixa renda e que acessa a escola pública, os governos de todas as esferas devem garantir a subsistência das famílias necessitadas, e, no tocante aos profissionais da educação, a manutenção de todos os contratos de trabalho – independentemente do vínculo – e a integralidade dos salários de professores e funcionários da educação.
  

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