A perda de direitos trabalhistas deve aflorar um cenário já
desfavorável aos professores; alguns estados mantêm 60% de seus docentes como
temporários.
Em 34 anos de profissão, é a primeira vez que Maria Fátima
Maia da Silva, 50 anos, se vê longe das salas de aula. Por recomendação médica,
ela está afastada há dois meses pelo stress acumulado ao lecionar em sete
escolas estaduais do Paraná.
A professora conta que sua peregrinação pelas unidades da
rede começou em fevereiro deste ano, quando o governo do Estado colocou em
prática a redução das horas-atividades dos docentes, passando de sete para
cinco as horas de trabalho do professor em uma carga horária de 20 horas/aulas
semanais.
Até a decisão, Maria trabalhava em uma única escola onde
cumpria a jornada de 40 horas semanais, 20 horas da lotação em Biologia e 20 em
Ciências. Após a medida, a professora teve as horas de trabalho reduzidas para
13 e se viu obrigada a procurar por outras instituições para compor o tempo de
cada disciplina.
“Na parte da manhã, fiquei com duas escolas. Negociei para
que a carga de 20 horas de uma lotação fosse alcançada em quatro dias, então
cumpria três manhãs em uma escola e uma na outra, com cinco horas por período.
Para cumprir as 20 restantes, peguei mais cinco escolas para lecionar à noite,
cumprindo por dia da semana uma carga de quatro horas em cada uma delas”.
Maria conta que, além da jornada exaustiva em diferentes salas
de aula, pesava também o tempo de deslocamento até cada um dos endereços. Entre
idas e voltas ela chegava a passar quatro horas no transporte público. A rotina
foi interrompida em junho quando a estafa falou mais alto.
Na visão da vice-presidente da Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Educação (CNTE), Marlei Fernandes de Carvalho, o caso
desrespeita o previsto na Lei Federal nº 11.738/2008 que institui o piso
salarial para os profissionais do magistério público da educação básica. No
quarto parágrafo do segundo artigo da Lei consta que os professores devem ter
assegurados 2/3 de sua carga horária para a interação com os estudantes.
“Isso significa que o 1/3 restante deve ser reservado para o
planejamento. Com a redução das horas, descarta-se esse tempo de trabalho fora
da sala de aula, o que deve fazer com que muitos professores penalizem seu
tempo livre para cumprir todas as demandas”, avalia.
Precarização
Outro caso repercutiu junto à comunidade docente do município
de Angelina, em Santa Catarina. Diante da demanda de contratar educadores
físicos para duas escolas da rede municipal, a prefeitura publicou o pregão
presencial nº 018/2017, em abril, baseado em uma licitação de “menor preço
global”. Na prática, um leilão reverso para a contratação de professores.
O edital partia de um pagamento máximo de 1200 reais para uma
jornada de 20 horas semanais, mas atrelava sua definição a um leilão que
deveria ser feito com o envio de propostas salariais a menores custos. O
processo só não foi adiante porque foi interpelado pelo Ministério Público de
Contas (MPC-SC) via procedimento administrativo.
“É um momento delicado de perspectivas para esses
profissionais”, reflete o presidente do CNTE, Heleno Araújo, fazendo referência
à precarização que pode ser esperada para a categoria docente no bojo das
reformas e medidas acatadas pelo governo Temer.
Para além da Lei da Terceirização, já em vigor, e da Reforma
Trabalhista, que passa a vigorar a partir de novembro, Araújo relembra os
impactos da Emenda Constitucional 95 que, entre outras medidas, congela os
investimentos públicos pelos próximos 20 anos. “Com menos recursos para a
educação, temos prejudicadas as metas 15 a 18 do Plano Nacional de Educação que
previam ações de valorização docente.”
Ele também comenta a contribuição da Reforma do Ensino Médio
no processo de desvalorização. “A medida altera a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação e acrescenta o notório saber como critério de validação de
contratação. Ou seja, serão aceitos profissionais sem licenciatura nas escolas,
o que também significa precarizar.”
Para os especialistas, é preciso considerar ainda que a
precarização da carreira docente se dará em um contexto já desfavorável, com
base no número de professores que atuam como temporários nas redes, ou seja,
não fazem parte do quadro efetivo. O Estado do Mato Grosso, por exemplo, mantém
60% de seus professores como temporários; são igualmente expressivos os
porcentuais de Santa Catarina, 57%, Mato Grosso do Sul, 50%, Minas Gerais 48%,
Pernambuco 44% e São Paulo, 34%.
Na visão de Heleno, isso burla o previsto na legislação. “Na
Constituição Federal consta que o ingresso a um serviço público deve ser feito
por meio de concurso público”. O especialista reforça que a contratação
temporária deve ser prevista em situações de emergência, “para que as demandas não
deixem de ser atendidas e, por isso mesmo, vista como exceção e não regra”.
Os direitos trabalhistas estão em jogo. Como os professores
temporários não podem criar vínculo com as redes, eles precisam alternar tempo
de aula com tempo de afastamento.
Segundo a presidente do Sindicato dos Professores do Ensino
Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), Maria Izabel Azevedo Noronha, até
2015 os professores paulistas temporários cumpriam quarentena, ou seja, ficavam
quarenta dias afastados e voltavam a lecionar na rede. Já chegou a ser
“duzentena”, com o afastamento de um ano a cada um lecionado. “Até que na greve
de 2015 conseguimos uma contratação de quatro anos sem quebra de contrato”,
lembra. Segundo a presidente, benefícios como o quinquênio ou a sexta parte,
gratificações dadas a servidores públicos por tempo de trabalho, só foram
adquiridos para a categoria em 2014.
No contexto da terceirização, os especialistas temem que os
concursos públicos deixem de ser realizados e que os professores sejam terceirizados
como já acontece com outros profissionais da educação, como merendeiras,
porteiros e seguranças. Ou ainda que se entregue a administração das escolas e
todo o seu quadro às organizações sociais (OSs).
A ação não seria novidade no setor. No ano passado, o estado
de Goiás publicou um edital chamando organizações sociais a assumirem a gestão
de escolas. A decisão causou mobilização por parte dos estudantes, que chegaram
a ocupar 28 escolas no estado. O edital acabou sendo suspenso pela justiça
goiana.
Heleno relembra que enquanto servidores públicos, os
professores dispõem de dispositivos legais que buscam proteger a carreira e
promover subsídios que estimulem a permanência dos que já estão em atividade e
o ingresso de estudantes na área. “Em empresas, eles estarão submetidos à
disputa do mercado, o que é preocupante”.
Direitos perdidos
A apreensão também chega à comunidade de professores das
escolas particulares. Na época da aprovação da Reforma Trabalhista, o Sindicato
dos Professores do ABC (Sinpro-ABC) lançou uma nota com os principais impactos
à carreira dos professores.
Entre as principais precarizações, a questão do negociado
sobre o legislado; o parcelamento das férias em até três vezes ao longo do ano;
a possibilidade das escolas não mais remunerarem financeiramente os trabalhos
extras dos professores, que passariam a contabilizar em bancos de hora; o
trabalho intermitente, que abriria a brecha para que professores ficassem à
disposição das escolas 24 horas, e fossem remunerados apenas pelo período
trabalhado; e a terceirização irrestrita, que pode dar fim a benefícios
empregatícios como 13º salário, participação nos lucros e férias.
Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil
(Fonte: Carta Capital, 16/08/2017)
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